News

,

A Ameaça do Retrocesso: Por que IBS e CBS Não Podem Integrar a Base do ICMS, ISS e IPI

A promulgação da Emenda Constitucional nº 132/2023, que instituiu a Reforma Tributária, representou um marco histórico, acenando com a promessa de simplificação, transparência e racionalidade para o caótico sistema tributário brasileiro. A criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), com sua lógica de valor agregado e não cumulatividade plena, é o pilar desta transformação.

Contudo, uma interpretação perigosa, surgida nos bastidores dos entes federativos, ameaça minar os alicerces da reforma antes mesmo de sua plena implementação: a tese de que os novos tributos devem compor a base de cálculo do ICMS, ISS e IPI durante o longo período de transição.

Este artigo se propõe a analisar, de forma crítica, os dois lados dessa contenda.

A Posição dos Entes Federativos: Uma Lógica de Proteção Arrecadatória

De forma objetiva, o argumento central de estados e municípios para defender a inclusão do IBS e da CBS na base de cálculo dos tributos atuais se ancora em dois pontos principais: o silêncio da norma e a neutralidade da arrecadação.

Os defensores da tese apontam que a Emenda Constitucional nº 132/2023, bem como os projetos de lei complementar em discussão, não proíbem expressamente essa inclusão. Diante dessa suposta lacuna, aplicar-se-ia a regra geral “vigente”, que permite a inclusão de um tributo na base de cálculo de outro, a menos que haja vedação explícita.

O segundo ponto, de natureza pragmática, é a manutenção da arrecadação durante a transição (2026-2032). Os entes federativos temem que a não inclusão gere uma queda abrupta e não planejada de receita, comprometendo o princípio da neutralidade da carga tributária, que visa justamente garantir que não haja perda arrecadatória para a Federação como um todo. Trata-se, em essência, de uma manobra defensiva para blindar os cofres públicos em um cenário de incerteza.

A Insustentabilidade da Tese: Uma Crítica Fundamentada

Embora a preocupação com a receita seja legítima, a solução proposta é drasticamente equivocada e conflita diretamente com os objetivos da reforma. As razões para sua refutação são robustas e podem ser organizadas nas seguintes categorias:

 

1. Razões Jurídicas: Uma Afronta aos Pilares da Reforma

  • Contrariedade à Premissa do ‘Cálculo por Fora’: A maior inovação do IBS e da CBS é a sua natureza de Imposto sobre Valor Agregado (IVA), cujo cálculo é feito “por fora”, ou seja, o tributo não compõe sua própria base de cálculo. Permitir que esses mesmos tributos incidam “por dentro” da base do ICMS, ISS e IPI é uma contradição sistêmica. Recria-se, por via transversa, a perversa lógica da tributação em cascata (“tributo sobre tributo”) que a reforma visa extirpar. Fere-se o espírito e a coerência da nova sistemática.
  • Inconstitucionalidade e Ilegalidade: A interpretação viola princípios constitucionais agora reforçados pela própria EC 132/2023. A não cumulatividade, prevista de forma ampla e irrestrita para os novos tributos, é frontalmente agredida. Ao embutir o IBS/CBS no custo de uma operação sujeita ao ICMS/ISS, gera-se um resquício de cumulatividade que a reforma se propôs a eliminar. Ademais, viola o princípio da transparência, pois o contribuinte final não terá clareza sobre a carga tributária real embutida no preço, um dos maiores problemas do sistema atual.
  • A Desconexão com a Jurisprudência Consolidada do STF: A tese de que IBS e CBS devam compor a base de cálculo de outros tributos ignora de forma deliberada a evolução e a consolidação da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. O STF, no julgamento da exclusão do ICMS da base de cálculo de PIS e COFINS (Tema 69), já pacificou o entendimento de que o ICMS, por não constituir receita ou faturamento do contribuinte, não integra a base de cálculo do PIS/COFINS. Este mesmo racional está em vias de ser formalmente aplicado ao ISS (Tema 118). Ademais a inclusão do PIS/COFINS em suas próprias bases de cálculo é altamente questionável, existindo hoje milhares de processos discutindo essa incidência, com diversos precedentes favoráveis aos contribuintes. Assim, se os tributos que estão sendo substituídos (ICMS, ISS, PIS/COFINS) estão sendo categoricamente definidos pelo Poder Judiciário como valores estranhos ao conceito de receita, constitui uma falácia jurídica argumentar que seus substitutos diretos (IBS e CBS) poderiam, por um artifício interpretativo, assumir natureza distinta e compor a base de cálculo de tributos remanescentes. Trata-se de uma tentativa de reviver, na transição, um vício sistêmico que a mais alta corte do país já expurgou do ordenamento.
  • Violação de Princípios Jurídicos Estabelecidos: A tese ignora a consolidação de princípios como a segurança jurídica, a previsibilidade e a proteção da confiança legítima. Os agentes econômicos estão se preparando para um novo ambiente de negócios baseado na simplificação e na racionalidade. A criação dessa nova complexidade gera um ambiente de profunda insegurança.

 

2. Razões Econômicas: Um Tiro no Pé da Competitividade

  • Impactos na Economia Nacional e Regional: A consequência imediata seria o aumento da carga tributária efetiva e, por conseguinte, a elevação dos preços de bens e serviços. Isso deprime o consumo, desestimula a produção e impacta negativamente o crescimento econômico. Em vez de impulsionar a economia, a transição tributária se tornaria um fator inflacionário e recessivo.
  • A Neutralização do Risco pela Transição Gradual e o Efeito Anulatório da Tese: A arquitetura da reforma prevê uma transição segura e controlada, cujo marco inicial em 2026 é um período de teste com alíquotas-teste para o IBS e a CBS (que somados perfazem 1%). Esta fase foi desenhada para permitir a calibragem do sistema, a aferição de impactos e a preparação dos entes federativos sem choques abruptos na arrecadação ou nos preços. A proposta de incluir os novos tributos na base de cálculo dos antigos anula o propósito central dessa transição. Ela introduz um elemento de máxima incerteza e alto potencial de litigiosidade justamente quando o sistema busca o oposto: previsibilidade e ajuste. Em vez de um período de adaptação, teríamos o estopim de uma nova e massificada disputa judicial, minando a credibilidade e a eficácia da reforma antes mesmo de sua plena implementação.
  • Efeitos sobre o Orçamento dos Estados e Municípios: A aparente vantagem arrecadatória de curto prazo é uma ilusão. Essa interpretação nascerá morta juridicamente, fadada a uma contestação maciça no Judiciário. O resultado será um passivo bilionário para os entes federativos, que, ao final de uma longa batalha judicial, provavelmente terão que restituir os valores cobrados indevidamente com juros e correção monetária. O risco fiscal criado por essa aventura jurídica supera em muito qualquer ganho imediato.
  • Consequências para o Setor Produtivo e a Competitividade: Para as empresas, o efeito é devastador. Além do aumento de custos, a medida ressuscita a complexidade de apuração, demandando adaptações sistêmicas e planejamento tributário para mitigar um problema que não deveria existir. Isso reduz a competitividade das empresas brasileiras tanto no mercado interno quanto no externo, tornando o país um ambiente de negócios menos atrativo para investimentos.

 

3. Razões Políticas e Institucionais: A Erosão da Confiança

  • Estímulo ao Conflito Federativo: A Reforma Tributária exige um nível inédito de cooperação, especialmente através do Conselho Federativo. Uma interpretação unilateral e agressiva como essa envenena o ambiente político, mina a confiança entre os entes e pode ressuscitar a “guerra fiscal” que se pretendia pacificar.
  • Sobrecarga do Judiciário e Insegurança Sistêmica: A consequência inevitável seria a “judicialização da transição”, com milhões de ações questionando a cobrança. Isso sobrecarregaria o Poder Judiciário por mais uma década, perpetuando a insegurança jurídica e adiando a estabilização do ambiente de negócios que a reforma deveria proporcionar.
  • Quebra da Promessa Social: Para a sociedade, a reforma foi apresentada como um caminho para um sistema mais justo e compreensível. Validar essa tese seria uma traição a essa promessa, demonstrando que a velha lógica arrecadatória a qualquer custo ainda prevalece sobre a racionalidade e o interesse público.

Conclusão

A tentativa de incluir IBS e CBS na base de cálculo do ICMS, ISS e IPI durante a transição é mais do que um erro de interpretação; é um atentado contra a essência da Reforma Tributária. Contraria seus fundamentos jurídicos, gera efeitos econômicos deletérios e envenena o ambiente político-institucional necessário para seu sucesso.

É imperativo que o Congresso Nacional, na regulamentação da reforma por meio das leis complementares, vede expressamente tal prática, destacando-se como exemplo o PLP 16/2025, atualmente aguardando apreciação na Câmara dos Deputados. A clareza legislativa é o único antídoto para evitar que o país mergulhe em mais uma década de litigiosidade extenuante, desperdiçando a oportunidade histórica de construir um sistema tributário que finalmente sirva de alavanca para o desenvolvimento, e não como uma âncora.