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Segurança Jurídica em Xeque: A Decisão do STJ sobre a Consulta Fiscal e a Prescrição de Créditos Tributários

A intrincada teia do sistema tributário brasileiro frequentemente conduz os contribuintes a buscar esclarecimentos formais junto à Receita Federal do Brasil (RFB) por meio de consultas fiscais. Esse mecanismo, destinado a dirimir dúvidas sobre a aplicação da legislação tributária, tem sido tradicionalmente visto como uma ferramenta de segurança jurídica. Contudo, recente decisão da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) lança novas luzes sobre a eficácia desse instrumento na preservação dos direitos creditórios dos contribuintes.

O Caso em Pauta: Recurso Especial 2.032.281/CE

No julgamento do Recurso Especial 2.032.281/CE, a Primeira Turma do STJ enfrentou a questão de saber se a apresentação de uma consulta fiscal à RFB teria o efeito de suspender ou interromper o prazo prescricional para que os contribuintes pudessem pleitear a restituição ou compensação de tributos indevidamente pagos. Em 19.08.2025, em acórdão ainda não publicado, a Turma, por unanimidade, decidiu que a mera apresentação de consulta fiscal não possui o condão de suspender nem interromper o prazo prescricional para a recuperação de tributos.

Implicações Práticas da Decisão: Desafios para os Contribuintes

A decisão da Primeira Turma impõe desafios significativos aos contribuintes, especialmente no que tange à gestão de seus créditos tributários:

  1. Risco de Prescrição de Direitos Creditórios: Com a confirmação de que a consulta fiscal não afeta o curso do prazo prescricional, os contribuintes que aguardam a resposta da RFB podem ver seus direitos à restituição ou compensação de tributos indevidamente pagos serem extintos pelo decurso do tempo, caso não adotem medidas judiciais tempestivas.
  2. Incentivo à Judicialização Prematura: A necessidade de evitar a prescrição pode compelir os contribuintes a ingressar com ações judiciais antes mesmo de obter uma resposta administrativa, aumentando o volume de litígios e sobrecarregando o Poder Judiciário. Isso desestimula a busca por esclarecimentos na esfera administrativa e fomenta um ambiente de desconfiança.
  3. Insegurança Jurídica: A decisão gera um ambiente de incerteza, onde os contribuintes ficam em dúvida sobre a melhor estratégia a adotar para a recuperação de créditos tributários, especialmente diante da morosidade que pode caracterizar o processo de consulta fiscal. A insegurança é potencializada pela aparente contradição entre a busca pela conformidade (via consulta) e a precarização do direito que dela poderia advir.

O Artigo 4º, Parágrafo Único, do Decreto 20.910/1932: Uma Perspectiva Alternativa

A posição da Primeira Turma merece ser confrontada com dispositivos legais que visam proteger o contribuinte diante da inércia administrativa. O Decreto 20.910/1932, que regula a prescrição quinquenal contra a Fazenda Pública, estabelece em seu artigo 4º que “não corre a prescrição durante a demora que, no estudo, ao reconhecimento ou no pagamento da dívida, considerada líquida, tiverem as repartições ou funcionários encarregados de estudar e apurá-la”.

O parágrafo único desse artigo dispõe que:

“a suspensão da prescrição, neste caso, verificar-se-á pela entrada do requerimento do titular do direito ou do credor nos livros ou protocolos das repartições públicas, com         designação do dia, mês e ano”

Essa disposição legal sugere que, em situações em que há um requerimento formal do contribuinte e uma demora na resposta por parte da administração pública, o prazo prescricional deveria ser suspenso. A aplicação desse dispositivo ao contexto das consultas fiscais poderia oferecer uma salvaguarda aos contribuintes, evitando a perda de direitos em razão da inércia administrativa, que se manifesta, muitas vezes, no tempo que a RFB leva para analisar e responder às consultas. Não se trata de uma “dívida líquida” no sentido estrito de um crédito já reconhecido, mas de um direito em potencial que se busca esclarecer, cuja ausência de resposta tempestiva não pode prejudicar o requerente.

Necessidade de Revisão da Posição da Primeira Turma: Um Chamado à Segunda Turma

Diante das implicações adversas da decisão da Primeira Turma, torna-se imperativo que a matéria seja reexaminada, inclusive pela Segunda Turma do STJ, que por vezes adota um posicionamento mais protetivo aos direitos do contribuinte em matéria tributária, como se destaca do julgado abaixo que aponta para construção diversa:

“PROCESSUAL CIVIL E TRIBUTÁRIO. DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO, AUTORIZANDO A COMPENSAÇÃO DE FINSOCIAL COM COFINS. SUPERVENIÊNCIA DE LEI QUE PERMITE COMPENSAÇÃO COM DIVERSOS DÉBITOS ADMINISTRADOS PELA RECEITA FEDERAL. DÚVIDA DA EMPRESA. FORMULAÇÃO DE CONSULTA À RECEITA FEDERAL. SUSPENSÃO DO PRAZO PRESCRICIONAL.

1. Discutiu-se nos autos do Mandado de Segurança a formulação de consulta à Receita Federal, que visava a obter deste órgão arrecadador informações quanto à possibilidade da compensação com base no regime disposto na Lei 10.637/2002, superveniente ao trânsito em julgado da decisão judicial que declarou o direito de compensar as parcelas indevidas do Finsocial com débitos de COFINS.

2. A empresa recorrente, por não possuir débitos de COFINS, gostaria de compensar o indébito relativo ao Finsocial com outros tributos administrados pela Receita Federal. No entanto, como o trânsito em julgado da decisão judicial a ela favorável ocorreu antes da entrada em vigor da Lei 10.637/2002 (a sentença autorizou apenas a compensação entre os tributos de idêntica finalidade/destinação), a empresa pleiteou manifestação da autoridade fiscal quanto à possibilidade de realizar a compensação nos termos do direito superveniente.

3. O art. 49 do Decreto 70.235/1972 estabelece que “A consulta não suspende o prazo para recolhimento de tributo, retido na fonte ou autolançado antes ou depois de sua apresentação, nem o prazo para apresentação de declaração de rendimentos”, razão pela qual a leitura isolada desse dispositivo poderia sustentar a exegese apressada que veio a ser adotada no acórdão recorrido, isto é, de que a ausência de efeito suspensivo à consulta decorre da própria falta de previsão legal.

4. Sucede que o dispositivo acima disciplina exclusivamente a situação dos débitos do sujeito passivo, que, portanto, deverão continuar a ser recolhidos durante a tramitação da consulta. Ainda assim, nota-se que a própria legislação tributária expressamente obsta a instauração de procedimento fiscal contra o sujeito passivo, durante a tramitação da consulta (art. 48) e afasta a exigibilidade do tributo que deixou de ser recolhido entre a decisão de primeira instância administrativa, favorável ao contribuinte, e sua reforma na segunda instância (art. 50).

5. Não há motivo para afastar do procedimento de consulta – cujo conteúdo verse especificamente dúvida quanto à legislação tributária aplicável à compensação tributária – a orientação jurisprudencial adotada em relação ao pedido de habilitação do crédito tributário, no sentido de que a sua instauração suspende o prazo de prescrição da compensação.

6. A fundada dúvida da empresa denota que esta agiu de boa-fé ao formular a consulta, dado que esta poderia, em tese, optar por imediatamente submeter ao Fisco a denominada “Declaração de Compensação”, mas não o fez justamente por não querer assumir, por conta própria, o risco de ter o encontro de contas indeferido pela Receita Federal.

7. O Código Tributário Nacional, ao disciplinar a Restituição do Indébito, é de fato silente quanto às circunstâncias que suspendem ou interrompem a prescrição em favor dos entes públicos. Da mesma forma, a legislação tributária esparsa, salvo engano, caracteriza-se pela mesma conveniente omissão. Daí não se pode extrair, entretanto, que inexista “amparo legal” para a tese da empresa, até porque a instituição de hipóteses de suspensão ou interrupção da prescrição somente em benefício do Fisco, jamais em favor do contribuinte (quando este se tornar credor do Fisco), representaria medida ofensiva à isonomia, sendo descabido invocar aqui o princípio da supremacia do interesse público, pois os débitos do Fisco para com os contribuintes relacionam-se ao interesse público secundário, no qual o Estado não detém a prerrogativa de aplicar integralmente o regime de Direito Público.

8. A hipótese comporta aplicação do art. 4º, parágrafo único, do Decreto 20.910/1932, que prevê não correr a prescrição “durante a demora que, no estudo, ao reconhecimento ou no pagamento da dívida (…) tiverem as repartições ou funcionários encarregados de estudar e apurá-la”. (…)

9. Recurso Especial provido.

 

(STJ; Recurso Especial REsp 1646725 / CE; Relator(a): Herman Benjamin; Órgão Julgador: 2ª Turma; Data da Decisão: 14/03/2017; Data de Publicação: 27/04/2017)

A revisão da posição da Primeira Turma é crucial para:

  1. Harmonização Jurisprudencial: Buscar uma interpretação que alinhe a proteção dos direitos dos contribuintes com a eficiência administrativa, reconhecendo a consulta fiscal como um instrumento que, ao menos, suspende o prazo prescricional, em consonância com o espírito do Decreto 20.910/1932.
  2. Fortalecimento da Segurança Jurídica: Assegurar que os contribuintes possam utilizar os mecanismos administrativos disponíveis sem o receio de verem seus direitos prescritos, promovendo um ambiente de maior previsibilidade e confiança nas relações tributárias.
  3. Desestímulo à Litigiosidade Desnecessária: Reduzir a necessidade de ações judiciais prematuras, permitindo que as questões sejam resolvidas na esfera administrativa de forma eficaz e sem prejuízo aos direitos dos contribuintes, aliviando a carga do Poder Judiciário.

Conclusão: Um Apelo à Coerência e Justiça Tributária

A decisão da Primeira Turma do STJ, ao negar efeito suspensivo ou interruptivo à consulta fiscal no que tange ao prazo prescricional, representa um retrocesso na busca por um sistema tributário mais justo e eficiente. É fundamental que essa questão seja revisitada, considerando-se a aplicabilidade do artigo 4º, parágrafo único, do Decreto 20.910/1932, e que a Segunda Turma do STJ tenha a oportunidade de oferecer uma interpretação que equilibre os interesses da administração tributária com a proteção dos direitos dos contribuintes. Somente assim será possível construir um ambiente de maior segurança jurídica e confiança mútua entre Fisco e contribuintes, essencial para o desenvolvimento econômico e social do país.